Por Plinio Nastari*
Desde que a diversificação da produção de açúcar se intensificou na direção do etanol a partir da década de 1970, o setor sucroenergético não parou de se transformar. De atividade regulada e altamente dependente de intervenção do governo, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 foram definidos limites à intervenção do Estado no domínio econômico privado, daí advindo a extinção do IAA e um processo gradual de liberalização na comercialização e nos preços que durou mais de 10 anos.
Nessa mesma época, com a privatização das exportações de açúcar, antes monopólio do Estado, a expansão da produção foi financiada com instrumentos relacionados às exportações de açúcar. A possibilidade dos produtores de açúcar e etanol venderem excedentes de bioeletricidade conectando suas plantas ao grid, desenvolveu a cogeração. A venda de leveduras como componentes de ração e para uso humano, e o desenvolvimento de inúmeras aplicações para o uso do etanol na produção de tintas e solventes e de plásticos renováveis agregou cada vez mais valor e renda à produção.
Mas não ficou por aí. Em 2007, no Estado de São Paulo, foi assinado o Protocolo Agroambiental que acelerou a transição na direção do corte de cana mecanizado, abrindo espaço para o aproveitamento da enorme energia contida na palha da cana-de-açúcar. Foram superados os desafios técnicos relacionados à produção de etanol celulósico, ou de segunda geração (2G), e começaram a ser explorados mercados para bagaço em pellets destinado a substituição energética do carvão mineral. Em 2022, já foram exportados seis navios de pellets de bagaço à Europa para esse fim.
Surgem novas aplicações para o etanol em processos de descarbonização no setor de transportes aéreo e marítimo. O etanol passou a ser reconhecido como fonte prioritária para a produção de SAF (sustainable aviation fuel), e para a substituição de bunker fuel na navegação marítima. Em 2022, no mundo foram produzidos 111 bilhões de litros de etanol, que equivalem a 89 milhões de toneladas.
A DATAGRO estima que a demanda de etanol para a produção de SAF no mundo poderá chegar a adicionais 80 milhões de toneladas até 2040. A demanda de etanol para o transporte marítimo representa adicionais 50 a 60 milhões de toneladas por ano, e a demanda de etanol para plásticos verdes, considerando a substituição de 5% do etileno consumido no mundo até 2035 pode representar outros 20 milhões de toneladas, ou 24,5 bilhões de litros por ano.
Esses são números superlativos que levam muitos a questionar se haverá matérias primas em volume suficiente para suprir toda essa demanda potencial em um prazo de poucas décadas. A resposta é que sim, elas existem, no Brasil e em várias outras partes do mundo, de forma sustentável e sem agredir recursos naturais tão caros à humanidade como reservas florestais, a fertilidade dos solos, a disponibilidade de água e a proteção da biodiversidade.
Exemplos de que isso pode e está sendo feito são inúmeros, e merecem ser melhor conhecidos pela sociedade e por aqueles que formam opinião e tomam decisões estratégicas nos setores público e privado, para que essas iniciativas sejam reconhecidas e valorizadas, intensificando as ações nessa direção.
A diversificação continua na direção da biodigestão e a produção de biogás e biometano a partir de resíduos da cana, e também a captura de CO2 biogênico para sua captura e armazenamento (CCS, Carbon Capture & Storage) ou captura e uso (CCU, Carbon Capture & Use), para dar suporte a toda uma bioquímica baseada no uso do CO2 para a produção de combustíveis sintéticos como o e-metanol.
A Maersk, uma das maiores empresas globais de navegação, prevê comissionar em agosto de 2023 o primeiro navio de grande porte carregador de conteineres capaz de usar metanol renovável produzido a partir dessa rota. E já encomendou outros 25 navios similares que serão comissionados nos próximos 2 anos, numa tendencia que deverá se intensificar.
Quando for reconhecida a incorporação do carbono no solo obtida através de práticas agronômicas sustentáveis, algo que já está ocorrendo e ainda não foi adequadamente quantificado, o etanol de biomassa, cana e milho, produzidos de forma sustentável, estará próximo ou já terá atingido uma pegada de carbono negativa. Esse será um diferencial muito importante, que irá viabilizar o objetivo de emissão liquida zero (net zero emission) até 2050 perseguido pelo setor automotivo, considerando o conceito mais amplo e integral de avaliação de emissões denominado berço-ao-túmulo.
Essa conquista estará acessível a países que disponham de tecnologia e condições de produção de bioenergia, sem a necessidade de investimentos massivos na criação de infraestrutura de recarga de armazenadores de energia elétrica, ou baterias. A EPE estima que os investimentos na criação dessa infraestrutura no Brasil demandariam recursos estimados em entre 210 e 300 bilhões de dólares.
Mais do que isso, o etanol e o biometano tem sido reconhecidos como eficientes carregadores de hidrogênio, que é considerado o energético definitivo para aplicações em transporte e uso industrial. O Brasil já possui uma infraestrutura pronta de distribuição de hidrogênio através dos cerca de 43 mil postos de abastecimento de etanol espalhados em um país continental, e em breve bastará serem instalados reformadores nos postos para separar o hidrogênio contido no etanol para que essa realidade se torne aparente.
O etanol é combustível líquido de alta densidade energética e baixa pegada de carbono, produzido de forma descentralizada, gerando emprego e renda no interior do País, promovendo bem estar e desenvolvimento. A bioeletricidade, o biometano, o etanol 2G, o pellet de bagaço e o CO2 biogênico são energéticos que serão cada vez mais valorizados.
O Brasil tem uma solução pronta do ponto de vista energético e ambiental, com a vantagem adicional de ser certificada através do RenovaBio, programa inovador que precifica o carbono em mercado, e não pela caneta. Certificação transparente baseada em normas internacionais e executada por empresas supervisoras independentes, acreditadas e auditadas pelo governo e pela sociedade através de consultas públicas realizadas para cada processo de certificação. Certificação que inclui a observância de um critério rígido de elegibilidade de desmatamento zero.
Por todos esses motivos, é fundamental que se conscientize, com base em Ciência, a sociedade, formadores de opinião e tomadores de decisão sobre a oportunidade estratégica de ser valorizada essa extraordinária conquista tecnológica desenvolvida localmente e que, há varias décadas, encontra aplicações reconhecidas em muitas outras partes do mundo.
*Plínio Nastari é presidente da DATAGRO.